Recorrida...

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Aqui...

O progresso e o tempo novo
mataram os rebanhos,
as comparsas de esquila a martelo...
O brete - o rodeio e as marcações proteira a fora...
O rádio emudeceu as vitrolas
e o caminhão matou o tropeiro


E o homem?
E a mulher?




Ah! Estes ainda não...
Os homens e mulheres deste pago
estão como cernes de guajuvira,
eretos e firmes, como sempre.


Nas suas almas está guardada
a melhor fibra da raça crioula,
mantendo, como patrimônio maior,
a honra, a dignidade, o apego ao chão,
ao trabalho duro e honesto.


A gente do meu rincão
sabe arrancar deste solo
o seu sustento suado.





Crescemos tranqueando atrás do arado
e conversando com os bois;
por isso o braço forte, as mãos,
 a alma e o coração calejados pelo trabalho pacífico;
conduta que adquirimos pelos ensinamentos
dos nossos anteriores,
que balizaram rumos para nós;
montaram a cavalo para defender
e tornar brasileiro o chão onde pisamos
e que guarda suas cinzas.


Aqui, as nostalgias da campanha
encontram amparo nas cruzes sozinhas
quando debruçam as sombras, de braços abertos,
sobre a teimosia dos pajonais...
e por essas imagens é que as saudades
ganham a estaturas de cerros.


Aqui, repartimos a dor em silêncio,
porque a alma, quando está ferida,
substitui as palavras pelo idioma do coração.


Aqui, a sombra dos cinamomos
é muito mais que uma sombra...
É o lugar onde comungam os mansos e xucros,
remoendo, tranquilos, nos sóis de verões,
a seiva natural dos campos e onde as espécies se igualam,
celebrando a vida ao redor das casas.






Apenas aqui o andante descobre
o valor de um "Ô de casa",
quando, sovado de corredores,
bate palmas de esperança
na frente de um parapeito,
e as portas se abrem para ouvir
os seus relatos colhidos nas estradas.


Aqui, a cordeona tem voz de recuerdo,
a guitarra tem alma de pátria e querência.
Os galos acordam as madrugadas
e o cheiro dos campos vem dormir dentro de casa.






Aqui, se conhece a volta certa
dos cambões das porteiras
e se entende de laços, arames e tranças,
de potros e domas, conjuntas e jugos,
arados e enxadas, mariposas e galeotas,
machados e tiradeiras...






Aqui, as mangueiras encerram
os tombos dos pealos e os comandos de "Forma Caalo";
os berros das vacas mansas
timbram a alma do pago,
com refrões enluarados de madrugada.






Apenas aqui ainda se ouve,
nas tardes quentes de chuva,
o tuco-tuco, justificando seu nome,
e as calhandras ainda encontram
varais com charque para temperar o assovio.


Nas noites quentes ainda se escuta
a saparia afiando o canto
nas chairas dos juncais.
As esporas ainda riscam o chão dos galpões,
e as botas têm o couro marcado pelo suor dos cavalos...






As chaminés dos fogões a lenha
ainda fumegam pelas madrugadas
e ainda se pode ouvir as cantigas das sangas claras,
os berros de touro e a cantoria dos grilos.
As babas-de-boi tremulam nos caraguatás,
hasteando, em mastros de espinhos, os rumos dos ventos.






Aqui, ainda se pode ver bombachas remendadas
e camisas feitas de saco, estendidas
num quarador próximo a tabua de bater roupas,
nos empedrados das sangas.


As mulheres ainda usam sombrinhas,
lenços na cabeça, para a lida,
e ainda bordam panôs, aventais, guardanapos...
E ainda fazem pão com torresmo.


Aqui, a sabedoria secular ensinou que,
fazendo uma cruz com carvão sobre os ovos de galinha,
para chocar, os trovões não conseguem gorar;
e a natureza se encarrega de "descascar"
as ninhadas e espalhar infâncias de veludo
nos terreiros bem varridos.


Aqui, ainda se usa o macete
e a mordaça para sovar um couro...
e se toma café com bolo frito
nas tardes chuvosas de inverno.






A cicatriz dos rodados,
que nascia das cacimbas,
hoje serve de caminho
para a sobra dos aguaceiros
engordam as enchentes.
Às vezes, o céu pinga pelas goteiras
dos nossos tetos, apaga luas e estrelas,
mas acende, em cada um, a sabedoria e a esperança.






Aqui, a felicidade não tem anéis nos dedos e nem diplomas
nas paredes, mas se tem olhos na alma capazes de
interpretar as parábolas da natureza - porque sabemos
que os cantos matinais dos sabiás e bem-te-vis são, na verdade,
UM DIÁLOGO COM DEUS.


Letra de Eron Vaz Mattos
Extraída do livro e cd "Canto Ancestral" de Lisandro Amaral.
Desenhos de Átila Sá Siqueira